#AdiaEnem: a uma semana da prova, alunos sentem medo, despreparo e revolta

"Realizar o Enem antes da vacinação, além de ser muito irresponsável, é um ato de desrespeito à voz estudantil", alegam candidatos

Por Isabella Otto Atualizado em 30 out 2024, 18h10 - Publicado em 10 jan 2021, 10h05
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CAPRICHO/Sestini/Reprodução

O ano é 2021 e, em alguns dias, acontecerá o Enem 2020. Pode parecer meio confuso, e todo o processo foi mesmo. Além das polêmicas de todo ano envolvendo o MEC e o Inep, como falhas na Página do Participante e vazamento dos cadernos de questões, tivemos a pandemia de coronavírus, que tornou todo o caminho até aqui mais difícil – para alguns bem mais que para outros. Fato é que, a uma semana do 1º dia de prova, que acontece no próximo domingo, 17, os estudantes estão sentindo muitas coisas, mas preparo está longe de ser a maior delas.

#AdiaEnem: a uma semana da prova, alunos sentem medo, despreparo e revolta
Nataly Silva, de 19 anos, pede o adiamento do Enem 2020 desde abril Juliana Dias/CAPRICHO

Sem se darem por vencidos, grupos estudantis pedem novamente o adiamento do Enem 2020. De acordo com eles, não faz sentido realizar as provas antes da campanha de vacinação ser iniciada. Além disso, eles lamentam o fato de o Ministério da Educação ter ignorado completamente, e mais uma vez, os candidatos, quando estes votaram para que o exame acontecesse apenas em maio deste ano. “Jogaram toda a opinião pública para os ares”, lamenta Hebert Henrique Souza Santos, 21 anos, estudante de direito da Universidade Federal da Bahia. Ele vai prestar o Enem 2020 porque pretende ingressar em uma nova graduação, mas ainda não engoliu toda a palhaçada envolvendo a enquete que elegeria a nova data do exame.

A opção para que o Enem 2020 acontecesse em maio venceu com 49,7% dos votos, mesmo assim o MEC decidiu dar um “jeitinho brasileiro” e somar os votos do 2º e 3º lugares, para assim decidir que as provas aconteceriam em janeiro. “Não houve uma democracia para escolhermos a nova data. Os estudantes escolheram dias disponibilizados pelo MEC que foram simplesmente rejeitados. Quem sofre, mais uma vez, são as minorias, as pessoas pobres como eu, porque, em um ano letivo normal, nós já enfrentamos dificuldades, como falta de merenda, falta de professores e aulas, com a pandemia isso só se agravou. Conheço vários alunos que começaram a trabalhar durante a pandemia porque seus pais ficaram desempregados”, conta Nataly Silva, de 19 anos, estudante do Sergipe.

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A aluna da rede pública viralizou nas redes sociais após publicar uma foto em prol da campanha #AdiaEnem. A jovem disse que foi muito prejudicada desde o início da pandemia, pois a escola em que estudava não sabia como administrar as aulas online, até porque muitos estudantes não tinham acesso à internet no celular nem no computador. “Resolvi mudar de escola no final do ano para tentar correr atrás, mas não tem como a gente recuperar esse tempo perdido até o dia da prova. Nossa única solução é pedir novamente o adiamento do exame“, garante a jovem.

 

Nataly conta também que passou o ano letivo quase inteiro sem EAD, sem material didático e com um precário acesso à internet, já que havia tido o celular furtado pouco tempo antes do início da quarentena. “Eu estava usando um celularzinho da minha avó, só que ele não tirava foto e alguns professores estavam pedindo atividades por aplicativos de mensagem, e a gente precisava enviar imagens das nossas respostas e eu não conseguia fazer isso. Mais alunos não conseguiam também, principalmente aqueles que moram em zonas rurais, sem acesso à internet de qualidade. A escola então começou a nos ameaçar e reprovar, porque não estávamos entregando as atividades, mas não era porque não queríamos“, lamenta.

A estudante sergipana também se diz bastante preocupada com a segurança dos candidatos e de seus familiares. “O pedido de um novo adiamento vem também por questões sanitárias. Como fica a segurança e a saúde daqueles que prestarão a prova? Quais são as medidas sanitárias que serão aplicadas? A gente quer entrar na universidade, a gente quer realizar o sonho da nossa família, mudar de vida, mas com segurança. Quem garante que não passaremos várias horas em uma sala com candidatos assintomáticos? Quem garante que não vou pegar o vírus e passar para os meus familiares?“, questiona.

Em Ribeirão das Neves, município de Minas Gerais, Janaína Martins, de 23 anos, concorda com a fala da estudante. “A própria ciência aconselha a gente a evitar esses tipos de aglomerações, então realizar o Enem antes da vacinação, além de ser muito irresponsável, é um ato de desrespeito à voz estudantil. Sem contar que a gente que é pobre e mora na periferia é muito mais afetado. Estamos sem aulas presenciais nas escolas públicas e grande parte dos estudantes não tiveram acesso ao ensino à distância”, relata.

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A estudante de Direito nasceu e cresceu na periferia, e hoje só estuda em uma universidade particular por causa do Fies. “Ganhei 70% de bolsa, mas vou prestar o Enem 2020 porque estou correndo atrás de uma bolsa integral. Não é um desejo; é uma necessidade“, garante a universitária. “Eu não tive o privilégio de ficar em casa durante a quarentena, pois meu trabalho não permite isso. A gente que é pobre ou fica de quarentena e morre de fome ou vai pro corre trabalhar, mesmo com todos os riscos. Meus pais, por exemplo, são do grupo de risco, mas tenho que trabalhar e aproveito o computador do trabalho para realizar algumas atividades da faculdade, que é o único jeito agora. A gente bem sabe que a população que mais presta o Enem é a população pobre, negra e periférica“, atesta.

Para o baiano Hebert, o ingresso na universidade também se deu por causa do Enem, exame que presta desde 2016. “Em 2018, consegui com a nota da prova entrar na Federal da Bahia, com direito a 920 na redação e tudo! Este ano, decidi fazer a prova novamente pois estou pensando em mudar de curso, mas vou fazer muito a contragosto. Espero demais que, mesmo no último minuto, eles adiam o exame… A disparidade este ano será gritante! Eu não fazia ideia que o MEC e o Inep se mostrariam tão incapazes e tornariam todo esse processo do Enem ainda mais injusto. Como aluno proveniente de escola pública, tenho autoridade para afirmar que os estudantes não estão preparados. Muitos nem aulas tiveram em 2020! Para aqueles que tiveram algo, faltaram condições mentais e monetárias de ir além e conseguir um ensino de qualidade. As famílias pobres ficaram ainda mais pobres. Só os ricos lucraram com a pandemia“, diz o estudante de Direito. “Desta vez foi muito mais complicado e caótico, e o Inep simplesmente nos ignorou mais do que nunca. Eu consegui fazer minha inscrição para o Enem 2020 apenas no penúltimo dia, porque em todos os outros o site estava dando problema para mim. Mandava e-mail, entrava em contato, e nada. Isso aconteceu com vários amigos meus também. Falta muito diálogo e só vai se beneficiar quem estuda em escola particular, fez cursinho online e conseguiu ter aula à distância“, assegura Nataly Silva.

 

A desigualdade se torna ainda mais gritante quando o próprio Ministério da Educação e o Inep colocam como alternativa para aqueles que estão com medo de fazerem as provas presenciais o Enem Digital, que será testado pela primeira vez e está marcado para acontecer nos dias 31 de janeiro e 7 de fevereiro. Sugerir algo do tipo é privilegiar os mais privilegiados e ignorar completamente o fato de que, no Brasil, quase seis bilhões de estudantes não têm acesso à internet banda larga ou 3G/4G em casa, desde a pré-escola até a pós-graduação. Todos eles da rede pública de ensino.

Os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ainda mostram que, dos 780 mil alunos do ensino médio que não têm acesso a uma internet de qualidade, 740 mil estudam em escolas públicas. Como querer que esses jovens prestem o Enem Digital se nem acesso a um ensino à distância eles tiveram? Ou é muita alienação e falta de noção daqueles que estão no poder ou é muita maldade mesmo. “As minorias sempre ficam para trás porque o governo sabe que, se ele investir em educação, nós vamos mudar o mundo, e não é isso que eles querem ou pretendem”, afirma Nataly, de 19 anos, uma das milhares de vozes da rede pública de ensino silenciadas à contragosto pela enorme desigualdade social no Brasil.

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INEP NÃO RECUA E ENEM 2020 VAI ACONTECER EM JANEIRO

Na última sexta-feira, 8, a Defensoria Pública da União enviou uma ação à Justiça Federal pedindo o novo adiamento do Enem 2020 por razões sanitárias. No texto, apoiado pela União Nacional dos Estudantes e pela União Brasileira dos Estudantes Secundaristas, assim como por milhares de estudantes e vários políticos, consta a informação de que “não há maneira segura para a realização de um exame com quase seis milhões de estudantes neste momento, durante o novo pico de casos de COVID-19. Nos últimos dias, o Brasil ultrapassou as 200 mil mortes pela doença e apresenta hoje a maior média diária de mortes desde agosto. São mais de 8 milhões de casos diagnosticados no país.

Justiça Federal recebe pedido de adiamento do Enem; MEC recusa mobilização
Para os órgãos estudantis, não há possibilidade de um #EnemSeguro acontecer agora UBES/Divulgação

Em resposta dada à Justiça, o Inep diz que “reorganizar um calendário a nível de Enem é fragilizar e colocar em risco políticas públicas dele decorrentes, como sistema de cotas, financiamento estudantil, instrumentos que por sua vez são as chaves para minorar as desigualdades sociais tão alarmantes hoje no nosso país. Tirar a chance do estudante de prestar este Exame é acentuar, ainda mais, qualquer discrepância social, econômica, é colocar em um local ainda mais distante as perspectivas de ascensão e crescimento dessa juventude“. O MEC ainda diz que as medidas de segurança tomadas para conter a transmissão do coronavírus, como locar mais salas para a realização do exame e enchê-las com somente 50% de suas capacidades totais, além do uso obrigatório de máscara de proteção e álcool em gel, são suficientes para garantir um #EnemSeguro.

Mais justificativas foram usadas pelo Inep para explicar por que ele rejeitou o novo pedido de adiamento, como o fato de que e postergação “pode inviabilizar o início do ano letivo nas universidades federais, bem como a adesão aos programas Prouni e Fies” e que “o exame tem um custo aproximado de R$ 700 milhões, não podendo ser desconsiderado o impacto financeiro para o país decorrente de um eventual adiamento. Por fim, há que registrar que eventual adiamento do Enem 2020 pode inviabilizar o Enem 2021 previsto para novembro 2021, já que o planejamento do Enem começa em janeiro”.

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