Distanciamento social voluntário é, sim, um privilégio de classe

Poder fazer home office, ter uma academia em casa, água tratada pra beber e lavar as mãos... Pandemias não criam a desigualdade, mas as evidenciam bastante

Por Gabriela Junqueira Atualizado em 31 out 2024, 00h25 - Publicado em 19 mar 2020, 10h40
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CAPRICHO/Divulgação

O mundo vive uma pandemia e ficar em casa é essencial para que consigamos “achatar a curva” do pico de casos de coronavírus e reduzir as consequências do surto. Mas, em uma realidade marcada pela desigualdade social, não são todos que conseguem praticar o distanciamento social voluntário, por questões profissionais, econômicas e estruturais.

É assim que fica a Sé, uma das estações de metrô mais famosas de São Paulo, diariamente em horários de pico, entre 6h e 8h e entre 17h e 18h30 NurPhoto/Getty Images

Se você está pensando que tudo pode ser resolvido através de aulas à distância, home office e pedidos de comida por aplicativos… Bem, essa não é a realidade de todos. Lembre-se de que as estregas de app que chegam até você – e não chegam para tantos outros – são feitas por alguém que não teve o mesmo direito de, como diz a hashtag do momento, #StayTheFuckHome.

O que os pequenos comerciantes, que dependem diretamente do ganho do mês, vão fazer? Outra questão é: e os trabalhadores terceirizados? E quem é freelancer? E os brasileiros que não ganham um salário fixo e recebem de acordo com a quantidade de dias que trabalham, como pedreiros, manicures, motoristas, entregadores, jardineiros, ambulantes ou aquele pipoqueiro que fica em frente a sua escola e depende do movimento diário para gerar renda?

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Conforme reforça a Lei N°13979, a base das medidas adotadas para enfrentar a pandemia do COVID-19, todos têm assegurado, ou deveriam ter, “o pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas”. Na prática, contudo, o filme vencedor do Oscar 2020, Parasita, de Bong Joon-ho, dá para ser usado mais uma vez para promover a reflexão. Os ricos estão confortáveis em suas casas com academia e piscina, gravando seus Stories de mobilização a favor do distanciamento social, enquanto a secretária do lar, que faz parte de uma classe social menos favorecida e não pode se dar ao luxo de ficar em casa, mesmo que queira, até porque o filho foi dispensado da escolinha para tornar sua realidade ainda mais difícil, aparece ao fundo limpando os móveis para prevenir a contaminação. O rico pode comprar álcool em gel superfaturado e tem água tratada à vontade para lavar as mãos e beber. O pobre, aquele que mora na comunidade, no Sertão, nas cidades mais periféricas, nem sempre tem água, de qualquer tipo que seja, à sua disposição.

No atual momento em que vivemos no Brasil, ficar em casa é, sim, uma das medidas mais importantes para evitar uma transmissão comunitária do COVID-19, que se alastra muito rapidamente. Mas, além de se preocuparem com a pandemia, muitos precisam antes pensar em como colocar comida na mesa. É preciso assumir: distanciamento social voluntário e home office são privilégios de classe.

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Não podemos nos esquecer também de que, apenas em São Paulo, segundo o Censo de 2019, existem mais de 24 mil pessoas em situação de rua. O número é 53% maior se comparado ao de 2015. Dessas 24 mil, 7 mil estão no grupo de alto risco, ou seja, são mais velhas e/ou têm problemas de saúde. Como essas pessoas podem adotar as medidas recomendadas pela OMS (Organização Mundial de Saúde)? Onde podem dormir, lavar as mãos e arranjar álcool em gel?

É importante ressaltar que o surto do coronavírus não cria a desigualdade, ele apenas a evidencia. Mas sempre é tempo de mudar! Crises são momentos de ruptura e exigem que o Estado, as instituições privadas e cada integrante da sociedade tomem atitudes. Além do COVID-19, também precisamos combater a falta de empatia e cumprir nosso papel social. Alguns já estão agindo, liberando os empregados e não cortando seus salários, estendendo o prazo de quitar boletos, doando itens de higiene… É preciso combater tanto a pandemia quanto a falta de empatia.

Na Alemanha, por exemplo, o Governo anunciou apoio financeiro para aqueles que são freelancers. No Brasil, a Arquidiocese de São Paulo ofereceu a Casa de Oração do Povo de Rua para abrigar e isolar até 50  pessoas em situação de rua que contraírem a doença. Algumas pessoas destacaram nas redes sociais que continuarão pagando as pessoas que lhes prestam serviço regularmente. Outras compartilharam recados que deixaram em seus prédios, se oferecendo para realizar compras para pessoas que estão nos grupos de risco, como aquela vizinha mais teimosa de 75 anos que insiste em ir todo dia ao mercado.

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Nós aqui ficamos muito felizes e emocionados de ver atitudes assim ❤️ Ninguém é uma ilha!

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Em momentos como esse, também fica ainda mais evidente o poder de mudança que cada um carrega dentro de si. A forma como nós vivemos não é de tal jeito e ponto final – o mundo que encontramos hoje é resultado de uma construção social. Talvez não consigamos mudar tudo de uma hora para outra, mas muito pode ser feito.

Como você pode ajudar alguém hoje?

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