Mãe e filha se unem em trabalho voluntário no Quênia: “Me criou com asas”
Contra todas as imposições conservadoras que ditam o que é um lar saudável, Sandra e Talita construíram uma relação de amizade que percorre o mundo
Crescer em um lar saudável é um sonho universal: livre de qualquer tipo de toxicidade, cheio de compreensão e com discussões que acontecem para somar, não para subtrair. E quando pensamos nesse ambiente, talvez a primeira imagem que venha à nossa cabeça é a de uma família formada por um pai e uma mãe, que mora em uma casa enorme, com cachorro e jardim, bem novela das nove. Isso está no nosso subconsciente por questões que já conhecemos bem, mas não quer dizer que seja verdade.
Talita Soares, de 20 anos, foi criada por uma mãe solo, a Sandra Rodrigues, que teve a Talita aos 24, bem no meio da faculdade – que ela só foi conseguir terminar depois. Ao perceber que a relação com o pai da filha não daria certo, ela preferiu colocar um ponto final nela, pois não queria a Talita crescesse com um exemplo de relação tóxica dentro de casa.
E por falar em exemplo, a relação de Sandra com sua mãe não foi das melhores. “Eu não tive um bom exemplo dentro de casa e precisei me reinventar muito ao descobrir que estava grávida, porque eu tinha essa vontade de criar uma nova relação de mãe e filha, de fazer diferente. Eu sendo mãe da Talita estou ressignificando a Sandra filha. É como se eu fosse mãe da Talita e de uma Sandrinha ao mesmo tempo”, contra a educadora de 45 anos.
Talita manteve o contato com o pai, mas, por muitos anos, foram apenas as duas: “No final do dia, era sempre ela e eu. Por 18 anos foi assim: só a gente no nosso apartamentinho em São Paulo“, lembra a estudante, que hoje cursa Management of International Social Challenges na Erasmus University Rotterdam, na Holanda, onde vive desde 2020, quando se mudou para o país com a mãe, que hoje mora com o padrasto da Talita em Amsterdã.
A adaptação não foi fácil, até porque agora não seriam mais apenas as duas. “Minha mãe e eu moramos juntas, do nosso jeitinho, por anos e, quando nos mudamos para junto do meu padrasto, a dinâmica também mudou. Fora isso, eu não gostava do país, do frio, da língua. A pandemia começou na sequência, eu não tinha amigo nenhum e a real é que, no início, eu não queria nem sair do Brasil. Então, fiquei esses meses todos sem gostar muito da vida, querendo meu pai, minhas irmãs, minha rotina de volta. Foi estressante, mas, quando me mudei para Roterdão para fazer a faculdade, tudo melhorou”, conta a brasileira.
A graduação de Talita é uma combinação de Ciências Sociais, Relações Internacionais e Administração Pública. Em fevereiro, ela teve a chance de participar de um trabalho voluntário no Quênia ao lado da mãe, que já tinha voluntariado no país anteriormente.
Mãe e filha ficaram em Mumias, uma pequena cidade rural no condado de Kakamega. Para Sandra, ninguém volta a mesma pessoa depois de viver uma experiência do tipo. “Estamos falando de pobreza alimentícia, intelectual e de sentido na vida mesmo. Você compra uma bola que custa 15 centavos e você faz o dia de uma criança“, conta a educadora, que mostra um pouquinho do cenário de um estudante queniano: “Na educação primária [dos 7 aos 11 anos], é um professor para 120, 130 crianças. Quando os alunos vão para o Ensino Médio, tem adolescente que sai de casa às 4h30 e volta só às 21h. Pra você conseguir estudar, é preciso ter o mínimo de dinheiro. É sacrifício atrás de sacrifício. O deslocamento é muito grande, por estradas escuras e sem o mínimo de segurança”.
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Dentre as muitas lições valiosas que Talita aprendeu ao lado da mãe na viagem, uma delas foi relevar as pequenas irritações diárias por coisas que, se formos parar para analisar, são gotinhas de água no meio de um oceano. “Lá [no Quênia], todo mundo perde as pessoas muito facilmente para doenças e guerras“, lamenta a universitária, que gostaria que todo mundo tivesse a chance de explodir a bolha: “Você percebe como o mundo é imenso e cheio de coisas para viver e conhecer. E acaba que você aprende muito mais sobre si mesma quando vive longe de tudo que sempre conheceu. É bem transformador mesmo”.
O principal aprendizado que Sandra teve nessa segunda vez em Mumias é que bons conselhos são importantes; mas que nossas ações são muito mais! “O que você está fazendo para mudar o mundo? O que você tem feito na sua comunidade? O Brasil está lotado de esquinas que precisam de ajuda. Todo mundo pode ajudar todo mundo o tempo todo. Talvez, as pessoas só tenham que descobrir melhor o que elas gostam e sabem fazer para colocar isso em prática. Temos que partir do micro para o macro. Não adianta acreditar que um grupo de políticos vai resolver a vida de todo mundo. A gente precisa se ajudar mais”, opina.
“Minha mã nunca me limitou ou me restringiu. Eu, de verdade, não consigo pensar em alguma vez em que minha mãe simplesmente não me deixou fazer algo. Então, como ela sempre me criou com asas, nunca a vi como uma figura autoritária. Hoje, eu chego da balada às 6h já gravando áudio. Literalmente, tudo o que eu conto para as minhas amigas, eu conto para a minha mãe, com todos os detalhes”, revela Talita, que adora viajar e ir para shows com sua parceira.
Sandra acredita que nunca precisou fazer cobranças, porque a filha sempre acompanhou o esforço que a ela fez e faz no dia a dia, aprendendo na prática toda essa disciplina que ela acaba tendo com as responsabilidades dela também. “A Talita é uma mulher que aproveita as oportunidades que a vida traz. Eu busquei, na medida do possível, oferecer para ela as coisas que eu não tive, proporcionar para ela uma adolescência mais saudável. E ela correspondeu às expectativas! Ela é uma pessoa que aproveita cada segundo: todo dia é o melhor dia, todo show é o melhor show. Ela é aquela pessoa que, quando está em um lugar, está presente“, orgulha-se.
Do “apartamentinho” em São Paulo a eurotrips, de famílias tradicionais a mães solo, não existe uma constituição exata de lares saudáveis. Sandra não teve uma boa relação com sua mãe, e precisou se blindar desde muito nova para que sua saúde mental não fosse o tempo todo atingida, mas hoje ressignifica essa estrutura familar ao lado da filha e dá sua visão como educadora sobre relações tóxicas entre parentes: “Por exemplo, em cursos de formação de professores, gosto de dizer que não existe criança problema; existe criança desafio. Às vezes, ela faz o que faz para chamar a atenção e, no instante em que conhecemos os pais dela, paramos de cobrar aquela criança, porque ela é só um reflexo do que ela tem em casa. Não tinha como ser diferente, sabe? Para esses casos, defendo que a terapia deveria ser em conjunto. São os pais quem deveriam, inclusive, se presentear primeiro com isso. A gente precisa se ouvir mais”, afirma.