Margarida Bonetti escancara realidade distópica de um Brasil escravocrata

Ao falar de si na 3ª pessoa, a mulher da casa abandonada só expõe ainda mais sua Margarida Bonetti interior

Por Isabella Otto Atualizado em 30 out 2024, 15h46 - Publicado em 20 jul 2022, 15h33
Foto de Margarida Bonetti, a Mulher da Casa Abandonada. Ela é branca e usa uma espessa camada de pomada branca no rosto
Twitter/Reprodução

No último episódio do podcast A Mulher da Casa Abandonada, da Folha de S. Paulo, que narra uma reportagem investigativa comandada pelo jornalista Chico Felitti, finalmente ouvimos Margarida Bonetti dar sua primeira entrevista após ser acusada de manter uma empregada doméstica em condições análogas à escravidão por quase duas décadas nos EUA.

A maioria das falas da brasileira, que partence a uma família nobre e vive hoje numa casa que ainda vale uma boa quantia de milhões, mesmo que esteja caindo aos pedaços, é bastante significativa e mostra discursos adotados por uma elite que vive dentro de uma bolha repleta de teorias conspiratórias que dizem muito a respeito da sociedade em que vivemos.

 

Muitas dessas aspas que embrulham o estômago repercutiram nas redes sociais. Outras passaram despercebido – mas não por nós. Todas, sem exceção, merecem uma análise mais aprofundada, que você confere a seguir:

1. “Eu gosto muito da Globo”

Margarida Bonetti disse em entrevista a Chico Felitti que todas as acusações feitas contra ela são um complô envolvendo o FBI, e congressistas e advogados norte-americanos. Ela atribuiu o fato de falar de si em 3ª pessoa a isso e se comparou ao personagem Zé Leôncio, da novela da Pantanal, da TV Globo, emissora que disse gostar muito – possivelmente, na tentativa de mostrar que não faz parte daquela massa que se diz contrário ao canal de televisão. Ela mesma se contraria posteriormente, ao atacar, mais tarde, o veículo de comunicação ao qual o podcast pertence.

2. “É um tumor benigno, que dá em gente de raça negra”

A expressão “gente da raça negra” por si só já vem carregada de racismo, vide maneira como foi colocada na frase. A todo momento, Margarida culpabiliza a vítima (uma mulher negra, evidente), na tentativa de colocá-la em um papel de vilã, assim se eximindo de uma culpa a ela atribuída pelo FBI – que, segundo ela, tinha como alvo a sua pessoa, ao inventar uma história contra ela. Como se o FBI não tivesse mesmo mais o que fazer, colocando-se nesse papel de extrema importância e até mesmo arrogância.

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3. “Eles inventaram uma pessoa por vingança”

A mulher da casa abandona, após culpabilizar a emprega e as autoridades norte-americanas, diz que a vizinha também fez parte dessa ação conspiratória contra ela, que visava apenas prejudicar os patrões brasileiros que iam viver em outros países. Mais uma vez, ela desvia o foco e se coloca em papel de protagonista, mesmo que continue se referindo a ela mesma na 3ª pessoa.

4. “Como é que eu vou testemunhar, fazer alguma coisa, se eu não conseguia nem ficar de pé?!”

De novo, Margarida se coloca como “mocinha” de uma história que, ao mesmo tempo em que é sobre ela, não é; é uma história sobre escravidão humana em pleno século XXI.

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5. “Ela tinha um péssimo hábito de mentir desde quando eu era pequena”

Novamente, a vítima é culpabilizada. “Ela começou [a trabalhar para a família Bonetti] quando eu tinha nove anos de idade. A gente brincava de pega-varetas, de bola no quintal… Ela era muito mentirosa, então ela veio [para os EUA] já muito mentirosa(…) Ela tinha esse péssimo hábita da mentira(…) Ela não limpava a casa. A gente ficava brincando”, disse Margarida. De novo, a mulher negra é colocada no papel de vilã. Ela, a garotinha branca de família nobre, pertencente à elite paulistana, uma mera vítima.

6. “Você não vê filmes?”

A mulher garante que não sabia dos crimes que o marido cometia, e que não sabia que fazia parte do processo e das investigações do FBI (aqui, se contradizendo novamente, uma vez que anteriormente mostrou saber de toda a história envolvendo seu nome, dizendo que era tudo uma invenção). Ela garante que que seu mal foi dar muita liberdade nos EUA para sua emprega doméstica : “Ela ficava com a casa pra ela, ela fazia o que ela queria lá”, disse. Margarida ainda ironiza toda a questão envolvendo trabalho análogo à escravidão, questionando seu entrevistador: “Você não vê filme? Eles retratam a realidade”.

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7. “Francisco, calma, parece que você está até brigando. Isso aqui não é um caso de briga(…) Confronta com calma, está bom assim?”

Agora, é a vez do entrevistador ser colocado na posição de vilão e a entrevistada, como de praxe, no papel de vítima. Com a voz calma, Margarida entoa frases em tons de ameaça, como se ela soubesse fazer melhor o trabalho do jornalista que o próprio jornalista.

8. “Quanto você vai ganhar da Folha com esse caso aí?”

Aqui, a intenção é colocar o repórter em uma saia justa, insunuando que ele só está fazendo todo o trabalho investigativo por causa de dinheiro. “Você está chutando cachorro morto, basicamente, porque o caso é uma coisa triste e horrorosa que acontece, e você está revivendo. E é muito triste que você esteja fazendo isso(…) Arruma dinheiro de uma outra forma boa“, insinua.

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9. “Você começou a fazer pergunta e intorromper, e isso não dá certo”

Mais uma vez, Margarida quer ditar as regras do jogo e conduzir a entrevista, mesmo não estando em posição disso. “Eu decidi gravar, que já que você gosta de gravar as coisas”, cutucou durante mensagem gravada na secretária eletrônica do jornalista.

10. “Eu tô com muita dor no corpo, dor de tristeza que está se expressando fisicamente”

A todo momento, a mulher da casa abandonada diz que “ouviu de fulano” e ” escutou de ciclano” coisas que a colocam em um pedestal – sem nunca citar quem são essas pessoas. Em determinada hora, ela diz que foi elogiada por alguém do FBI, por ter se colocado à disposição das autoridades no Brasil: “Esse senhor falou pra mim: ‘Olha, a senhora me surpreendeu(…) porque todo mundo foge da gente(…) Porque a senhora tomou a iniciativa, mesmo estando sangrando e tudo'”, relatou, colocando-se, uma última vez, na posição de vítima da história que envolve um crime de trabalho análogo à escravidão.

 

Na internet, a repercussão sobre o caso só escancara ainda mais a questão sociocultural, racial e econômica aqui trazida à tona. Em uma publicação feita pelo programa Cidade Alerta, da TV Record, no Instagram, a respeito do caso d’A Mulher da Casa Abandonada, uma mulher posiciona-se: “Deixa ela [Margarida], gente. Bora falar e colocar em discurso a saúde no Brasil, a saúde no Acre. Já morreram 12 crianças por falta de medicamentos. O básico que era para nós, brasileiros, termos a saúde pública”.

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Outra diz o seguinte: “Deixa a mulher viver como quiser. É problema dela se não quer aparecer”. Uma terceira também sai em defesa de Margarida, classificando o caso todo como um “besteirol”. “Deixe a mulher em paz no lugar dela, 70 anos, deixem ela, não está fazendo mal a ninguém”, escreveu.

Todos esses comentários só mostram o quanto o discurso de Bonetti e a meneira dela se posicionar na entrevista escancaram lugares comuns de uma sociedade escravagista, que acredita que crimes de escravidão não são tão importantes para ganharem relevância nos noticiários. Afinal, esses crimes justamente fazem aquilo que os racistas mais têm medo ou se sentem incomodados: denunciam crimes por eles cometidos.

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