O antes e depois do papel da mulher na sociedade brasileira

No lar, na política, nas ruas: como a sociedade patriarcal moldou a figura feminina e como é vista hoje a representativa emancipação das mulheres.

Por Isabella Otto Atualizado em 31 out 2024, 00h30 - Publicado em 8 mar 2020, 10h01

Você já parou para refletir que muitas coisas que você faz hoje só faz por causa de outras mulheres que, no passado, lutaram para mudar a realidade a qual pertenciam? O modelo de escola brasileira que conhecemos hoje só existe porque, depois de muitos anos de privação de conhecimento, as mulheres receberam, enfim, uma autorização legal que garantia a elas o direito à educação, anteriormente apenas concedido aos homens. E se hoje você tem a liberdade de #sextar com suas amigas e postar loucamente nas redes sociais, isso também só ocorre porque, em algum dia do passado, mulheres se arriscaram em busca de educação, liberdade, emancipação e igualdade – e ainda se arriscam.

Quanto menos a mulher tivesse acesso ao conhecimento e trabalhasse seu cérebro, melhor. Foi apenas em 1870 que as escolas tiveram classes mistas, com meninos e meninas estudando juntos. Ilustração de @jesadaphorn/Getty Images

Em alguns sentidos, o papel da figura feminina mudou drasticamente, ao mesmo tempo em que é possível perceber que, de maneira assustadora, ele não mudou tanto assim. Na edução, no lar, como mãe, na rua, na política e com relação ao próprio corpo, saiba como era antes ser mulher na sociedade e como a sociedade as enxergavam, e como é hoje.

1. NA EDUCAÇÃO
ANTES

Durante o Período Colonial Brasileiro, entre os séculos XVI e XIX, ou seja, de 1500 a 1822, a educação da mulher era realizada em casa e tudo o que elas precisavam aprender era como ser uma boa esposa, uma boa mãe e a cuidar do lar. Somente em 1863 que a primeira escola para mulheres foi construída, o Colégio Florence, em Campinas. Ele retratava o início da educação feminina no país: segregada, voltada apenas para meninas de famílias ricas, e misógina. O que as garotas aprendiam anteriormente em casa, agora elas aprendiam na escola. Matérias como cálculo, por exemplo, eram autorizadas apenas para os meninos. O currículo escolar feminino incluía basicamente aulas de afazeres doméstico, costura, português e artes manuais. Em 1875, foi autorizado que as mulheres se profissionalizassem “na carreira do magistério”, mas o ensino superior ainda era um direito exclusivo dos homens. Apesar de a primeira mulher a ter ingressado em uma universidade no Brasil ter sido em 1880, e de as mulheres terem sido incorporadas pelas fábricas após o 3º período da Revolução Industrial Brasileira, entre 1930 e 1956, foi só em 1961, com a “Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional”, que “foi garantida a equivalência de todos os cursos de grau médio, abrindo a possibilidade para as mulheres que faziam magistério de disputar os vestibulares”.

HOJE
Na atualidade, 80% dos docentes da educação básica brasileira é formada por mulheres, segundo Censo Escolar divulgado em 2018. Elas também são maioria nas universidades, de acordo com relatório Education at Glance 2019. Apesar da enorme reviravolta no setor educacional, afinal, faz apenas 59 anos que as mulheres foram legalmente autorizadas a ingressarem no ensino superior, dados mostram que as pessoas do sexo feminino ainda encontram maiores dificuldades para arranjar emprego e sofrem com a diferença salarial. Mas não dá para deixar de comemorar! Em pouco tempo, a força feminina conquistou um espaço que anteriormente era negado a mulheres e contribuiu para grandes avanços nas áreas da ciência.

 

2. NO LAR
ANTES
Até o 3º período da Revolução Industrial Brasileira, entre os anos de 1930 e 1956, grande parte das mulheres que vivia no Brasil não trabalhava fora de casa. Esse cenário mudou com a chegada das fábricas têxteis no país, que foram importantes para a emancipação feminina, apesar de as condições de trabalho para as pessoas do sexo feminino terem sido ainda mais precárias que para as do sexo masculino. Aos poucos, após a chegada das mulheres nas fábricas e a “Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional”, elas começaram a ter uma vida profissional e se desprender do lar. Bem diferente do que acontecia na Idade Média, quando o papel das mulheres era simplesmente a procriação. As que não serviam para ser esposas e mães, serviam para satisfazer os prazeres carnais dos homens. A mulher era submissa à figura patriarcal da casa e as únicas que trabalhavam eram as camponesas, mas ainda assim o papel principal era acompanhar o marido no trabalho feudal.

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HOJE
As mulheres ainda são encarregadas de cuidar da casa e esse papel de ser a responsável pelas questões domésticas é ainda mais forte em cidades rurais do interior, onde o machismo e a cultura patriarcal estruturais ainda são mais latentes. Elas também ainda são as que mais ficam sobrecarregadas, pois precisam se dividir entre cuidar da casa, dos filhos, da vida pessoal e profissional, mesmo dividindo tarefas com o parceiro. Contudo, de acordo com um estudo realizado pelos demógrafos Suzana Cavenaghi e José Eustáquio Diniz Alves, coordenado pela Escola Nacional de Seguros, nos últimos 15 anos, o número de famílias chefiadas por mulheres mais que dobrou. Entre 2001 e 2015, o crescimento foi de 105%! O principal desafio hoje é inverter o papel da mulher dentro da cultura patriarcal nos lares mais pobres da sociedade, em suma formados por pessoas de baixa escolaridade e negras, que vivem à margem do desenvolvimento urbano e social. Precisamos de mais oportunidades.

“As mulheres, durante séculos, serviram de espelho aos homens por possuírem o poder mágico e delicioso de refletirem uma imagem do homem duas vezes maior que o natural”, disse certa vez a escritora Virginia Woolf. Melinda Podor/Getty Images

3. COMO MÃE
ANTES
Da idade média ao Período Colonial Brasileiro, até um pouco depois, o papel da mulher como esposa e mãe era o da reprodução. Ela precisava ser uma boa parideira para continuar o legado sanguíneo da família. “A partir da primeira escola de ler e escrever, fundada em 1549, pelos primeiros jesuítas aqui chegados, tinham a intenção na formação cultural da elite branca e masculina, o que foi nítida na obra jesuítica(…) [as mulheres] estavam destinadas ao lar e aos afazeres domésticos, no papel de mãe, esposa e mulher e nunca podiam ter o mesmo acesso que os homens e isso se inclui principalmente à educação; estavam a mercê do casamento [marido e filhos], trabalhos domésticos, cantos e orações, sob o controle de pais e maridos. Não só as mulheres brancas, mas também as índias foram consideradas dispensadas do sistema educacional. Naquela época, a mulher era destinada apenas ao casamento, e quando não conseguiam se casar [preocupação na colônia era com a honra, que na concepção da época, dependia da castidade feminina, tanto para a mulher como para o homem que ‘a guardava’], fez dos conventos e casas de recolhimento femininas, uma prática para as mulheres desamparadas ou solteiras”, diz trecho do artigo “A Questão Histórica da Mulher na Escola e na Sociedade”, escrito por Elizabeth de Jesus Santana, diretora educacional na FUMEC, e publicado em 7 de março de 2012.

HOJE
Também no mesmo artigo citado acima, Elizabeth ressalta que, “atualmente, muitas famílias são sustentadas por mães, tornando a sociedade em uma condição verdadeiramente matriarcal, e esse fato histórico tem mudado e muito a questão da mulher no sistema educacional e na sociedade”. Outro ponto interessante é perceber como a mulher se tornou mais autônoma com relação ao ato de ser mãe, antigamente tão dependente do casamento e do marido. Hoje, além de as mulheres conseguirem optar em se tornarem mães mais tarde, técnicas como o congelamento de óvulos ajudam nessa decisão. É uma escolha, assim como é uma escolha se tornar mãe solo. É claro que, em muitas culturas, principalmente por questões religiosas, essa autonomia ainda é motivo de julgamento, vista como pecado, mas bem menos que antigamente.

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4. NA RUA
ANTES
A advogada Daniela Benevides Essy, autora do artigo “A evolução histórica da violência contra a mulher no cenário brasileiro: do patriarcado à busca pela efetivação dos direitos humanos femininos”, explica no texto que, no início do século XVI, Portugal tinha acabado de descobrir o Brasil e, por interesses colonizadores, ditavam as normas por aqui. “A liberdade feminina, tanto da esposa como das filhas, era restringida do modo mais autoritário possível pelos patriarcas, que viam nessas mulheres propriedades suas”, conta a especialista, que complementa a discussão com o seguinte posicionamento: “na rua estavam as pessoas de classe mais baixa e os homens senhores do lar, portanto, as mulheres não deveriam misturar-se com pessoas desses níveis(…) fica nítido como a rua sempre foi um ambiente masculino, motivo pelo qual até hoje mulheres sofrem violência de todo gênero quando expostas a ambientes que não sejam seu próprio lar, e por isso são vistas como seres aptos a aceitarem qualquer tipo de assédio”. A sociedade patriarcal não via com bons olhos mulheres independentes, e isso vem de muito antes, de um movimento intitulado Caça às Bruxas, que ocorreu entre os séculos XV e XVIII. No Brasil, ele não foi tão forte, mas teve episódios isolados. As bruxas eram, na realidade, mulheres autônomas, que não dependiam dos maridos nem aceitavam o papel cultural ao qual estavam submetidas. Elas não aceitavam a submissão. Muitas delas encontravam no trabalho com ervas uma maneira de sobreviver e garantir sustento, o que contribuiu para o fato de elas serem vistas como feiticeiras. É por isso que a frase “nós somos netas das bruxas que vocês não conseguiram queimar” é tão icônica dentro do movimento feminista.

HOJE
O machismo é estrutural. Você já deve ter ouvido essa frase, certo? Isso porque os frutos podres da sociedade patriarcal continuam dando até hoje. O Brasil está entre os países com maior índice de feminicídios. Em um ranking formado por 83 nações, ele ocupa a 5ª posição, de acordo com o Mapa da Violência 2015 (Cebela/Flacso). No último ano, 2019, os casos de morte de mulheres motivadas pelo gênero tiveram um maior aumento desde que a lei do feminicídio entrou em vigor, em 2015. O levantamento foi realizado pelo “Monitor da Violência”, do portal G1. Algumas pessoas enxergam esses dados com um olhar otimista. Afinal, há mais crimes identificados porque há mais casos sendo denunciados e classificados corretamente, como crime de feminicídio e não apenas homicídio. Acre e Alagoas são os estados mais perigosos do Brasil para ser mulher. Aqui vale repetir a questão levantada pela advogada Daniela Benevides: “fica nítido como a rua sempre foi um ambiente masculino”… mas até quando?

No Brasil, o primeiro partido feminino foi fundado em 1920, por Leolinda Daltro. Alzira Soriano é considerada a primeira prefeita da América Latina, eleita em 1927 no Rio Grande Norte. Em 1935, Antonieta de Barros foi a primeira parlamentar negra da história do Brasil, eleita em Santa Catarina. Anna Sidorova/Getty Images

5. NA POLÍTICA
ANTES
O movimento sufragista, que tem suas origens na urbanização e na industrialização do século XIX, conforme aponta a historiadora Lidia Possas, da Unesp, em entrevista à antiga Mundo Estranho atual Superinteressante, foi imprescindível para determinar o papel que hoje as mulheres têm na vida política, tanto como cidadãs quanto como representantes no poder. Em 1931, o direito do voto às mulheres foi concedido, mas apenas parcialmente. O presidente em função Getúlio Vargas autorizou que somente solteiras, viúvas com renda própria ou casadas com a autorização do marido poderiam votar. A luta liderada por grupos feministas continuou no país e, no ano seguinte, Vargas criou o decreto n.º 21.076, que determinava que era eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na forma do código.

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HOJE
A política ainda é personificada pela figura do homem branco, hétero, rico e velho. Pessoas que não se encaixam nesse padrão ainda são marginalizadas o na área. Mulheres negras, pobres e da comunidade LGBTQI+ são as que mais sofrem com a falta de representatividade e espaço. A perseguição política contra essa parcela da população também é mais pulsante, vide assassinado da vereadora Marielle Franco, que foi morta a tiros no dia 14 de março de 2018, no centro do Rio de Janeiro. Quem matou Marielle? Quem mandou matar? Perguntas como essa permanecem sem respostas… “Dos mais desiguais na América Latina e no mundo, o Brasil ocupa o 152° lugar em participação das mulheres em cargos eletivos federais dentre 172 países ranqueados pela IPU (Inter-Parliamentary Union). Negros e indígenas são ainda mais sub-representados. Somente 13,5% dos vereadores e 12% dos prefeitos são mulheres”, diz trecho de matéria escrita pela ativista feminista Inês Castilho e publicada em junho de 2019 no site Outras Palavras.

6. COM RELAÇÃO AO PRÓPRIO CORPO
ANTES
Por tudo o que já falamos aqui, incluindo o controle patriarcal da vida da mulher, o papel que ela teve por décadas como reprodutora e questões culturais e religiosas, práticas sexuais que eram autorizadas para os homens eram vistas como imorais e até criminosas se realizadas por mulheres. Nos séculos passados, maridos podiam trair suas esposas, mas estas eram mortas se traíssem seus maridos. Esse “dois pesos, duas medidas” é claríssimo se olharmos registros que vão desde a Idade Média até a época colonial brasileira. Mulheres que buscavam o prazer e o conhecimento do próprio corpo através da masturbação eram vistas como pecadoras. Para as mulheres brancas e ricas, relações sexuais eram apenas para a reprodução. Para as mulheres negras, pobres e escravas, relações sexuais eram também para saciar os desejos dos patrões. Para os homens, relações sexuais eram e podiam ser tudo. 

HOJE
Em algumas partes do mundo, e do Brasil, as mulheres ainda são vistas ou como reprodutoras, as que são consideradas aptas para isso, ou como objetos de prazer, as que não são consideradas aptas para o casamento e a reprodução. A masturbação também continua sendo vista como pecado e, em alguns países, principalmente do continente africano, a mutilação feminina continua sendo uma realidade. O direito de decidir sobre o próprio corpo ainda é negado para as mulheres. Um exemplo claro disso, e bastante polêmico, é o do aborto. No Brasil, ele só é legal em três casos: quando a gravidez apresenta risco de vida para a mulher, quando a gestação é resultante de um estupro e quando o feto é diagnosticado anencefálico. A discussão é longa e envolve muitas questões, culturais a religiosas incluindo ideologias de vida, mas não dá para negar que, apesar da forte onda de empoderamento e emancipação feminina, o corpo da mulher ainda é mais dos outros que dela mesma – e padrões estéticos também contribuem para essa realidade.

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