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É preciso questionar ‘homens moralmente cinzas’ em livros de dark romance

Estilo se tornou um nicho extremamente popular porque exploram um viés do romance bastante questionável: violento, abusivo e selvagem.

Por Maki de Mingo, especial para a CAPRICHO Atualizado em 22 fev 2024, 09h45 - Publicado em 22 fev 2024, 06h00

Eu a encurralei, estávamos brigando, era uma discussão normal, e minha mão foi parar na garganta dela, ela me olhou bem nos olhos, pra minha alma, e disse: ‘Mais forte’.”

A frase acima com certeza surpreende – e virou meme no TikTok. Para quem conhece o movimento #booktok, em que usuários do aplicativo usam o seu espaço na rede social para falar sobre literatura e resenhar livros, o áudio virou uma piada interna sobre um tipo específico de leitora: as que caem de amores pelos “morally grey men”, ou “homens moralmente cinzas”, na tradução literal em português.  

Não exatamente um vilão, nem um mocinho, os homens moralmente cinzas se comportam exatamente como o título diz. Eles são cruéis, às vezes extremamente violentos e abusivos, menos com a mulher que dizem amar. Um exemplo recente e que foi sensação em 2023 no booktok é Xaden Riorson, o protagonista masculino de Quarta Asa, de Rebecca Yarros (Amazon, R$ 89*)

Porém, há quem diga que Xaden é um personagem “leve” em comparação com outros que têm conquistado o coração e as prateleiras de leitoras no mundo inteiro. Os dark romances, ou romances sombrios, em português, se tornaram um nicho extremamente popular porque exploram um viés do romance bastante questionável – aquele amor bruto, difícil, repleto de raiva e de sexo selvagem. É por isso, inclusive, que muitos desses livros contém cenas bastante explícitas, e uma lista de gatilhos que beira as duas páginas. 

@ghxst.r1d3s

|| #BookTok #biketok #helmetconfidence #booktokgirlies #kidnapper #meme #goviral #maskedmen #blowthishitup

♬ He let her go – Raditz and Turles

Porém, a questão aqui não é o “smut”, outro termo para definir os livros com cenas de sexo que têm ganhado muito espaço nas prateleiras femininas, mas sim os protagonistas masculinos um tanto quanto questionáveis que têm se tornado os favoritos das leitoras. Mulheres, às vezes, bastante novas que ainda estão se entendendo como seres românticos e até sexuais. 

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Problemático ou puro entretenimento?

Por um lado, os personagens moralmente cinzas, independente do gênero, são extremamente relacionáveis. Pense no seguinte: por mais que os contos de fadas, com seus príncipes e castelos encantados, sejam interessantes, na vida real ninguém é tão perfeito quanto uma princesa da Disney. As pessoas possuem falhas, defeitos e, às vezes, tomam decisões erradas ou com base nos seus sentimentos. 

Para usar um exemplo super simples, quem nunca devorou um pote de sorvete quando estava triste? Ou falou alguma bobagem para alguém querido num momento de raiva? Então. 

Os dark romances, ou romances sombrios, em português, se tornaram um nicho extremamente popular porque exploram um viés do romance bastante questionável – aquele amor bruto, difícil, repleto de raiva e de sexo selvagem. 👀

No extremo da balança, no entanto, nós precisamos considerar também que aquilo que consumimos têm um efeito na nossa percepção. Para dar outro exemplo, é como querer comprar um tênis da moda. É bem capaz de você começar a reparar em muitas pessoas usando o tal tênis na rua porque a sua percepção está direcionada por esse querer. 

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Como estamos falando de relacionamentos românticos, podemos também usar aqui a ideia da fetichização. Pense, por exemplo, na pessoa que se apaixonou por dramas coreanos e, “de repente”, parece se interessar só por homens e/ou mulheres com traços do leste asiático. 

“O alto consumo de livros com personagens masculinos moralmente cinzas pode moldar a visão das mulheres sobre as figuras masculinas ao normalizar comportamentos problemáticos, como manipulação e violência, e retratar essas atitudes como aceitáveis ou até mesmo desejáveis em um relacionamento”, explica a psicóloga Larissa Fonseca, terapeuta clínica há 15 anos com abordagem cognitiva comportamental. “Quando faz parte do nosso cotidiano, distorce a realidade e demonstra que o sofrimento em relação a tal agressividade é excessiva e não é correto se posicionar.”

O mundo já teve (muito) essa discussão antes, mas com outro tema: os videogames. Na época de catástrofes com o massacre de Columbine, em que dois alunos abriram fogo contra os alunos da Columbine HIgh School, no final dos anos 1990, e o uso excessivo de videogames de guerra e até músicas de rock e metal foram considerados parcialmente responsáveis pelo comportamento dos criminosos. 

É complexo apontar um culpado pela distorção da visão – principalmente quando o “culpado” em questão é um jogo, uma música ou um livro –, porém, precisamos considerar o quanto essas referências acabam normalizando comportamentos que são inaceitáveis. 

O alto consumo de livros com personagens masculinos moralmente cinzas pode moldar a visão das mulheres sobre as figuras masculinas ao normalizar comportamentos problemáticos

Larissa Fonseca, psicóloga clínica
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O mais curioso é que, assim como Xaden e tantos outros, esses personagens são em grande parte escritos por mulheres. “O desejo feminino por personagens possessivos e criminosos pode ser interpretado como uma manifestação de fantasias distorcida”, continua a psicóloga. “As personagens demonstram desejo e interesse por situações de posse. A intensidade emocional e a devoção extrema são valorizadas acima de considerações realistas sobre segurança e respeito mútuo.”

Para a profissional, o fato das próprias mulheres escreverem personagens moralmente cinzas pode refletir a internalização de narrativas culturais que glorificam o amor romântico idealizado, mesmo que isso signifique tolerar comportamentos abusivos. 

Prova de amor?

“Quem fez isso com você?”. “Se você tocar nela, você morre”. “Você é minha”. Frases como essa – e que povoam obras de romance dark – acabaram se transformando nas favoritas dessas leitoras porque são demonstrativos do comportamento possessivo desses personagens. E, claro, acabam se transformando também em altamente desejáveis. 

Quanto mais consumimos livros com essa narrativa, mais o romance saudável perde a cor, e normalizar comportamentos violentos e abusivos pode se tornar a norma, até mesmo uma prova de amor. “Conteúdos que retratam relacionamentos com personagens tóxicos e violentos podem normalizar esses comportamentos ao apresentá-los como parte do romance ou como prova de amor verdadeiro”, diz Larissa. “Isso pode levar mulheres a desconsiderar sinais de alerta em relacionamentos reais e a justificarem ou minimizarem o comportamento abusivo de parceiros.”

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No fim das contas, a realidade é essa: conviver com a agressividade nos torna agressivos. Consumir em excesso um conteúdo que diminui a mulher torna possível aceitar comportamentos violentos e abusivos como normal. Deixamos de colocar limites relacionados ao respeito e tomamos como verdade ser diminuída, agredida e menosprezada – tudo com a justificativa de que isso é amor. 

Por isso é tão importante manter em mente os sinais do relacionamento abusivo, para que ele não crie raízes na vida real. Preste sempre atenção em comportamentos como: 

  • Manipulação emocional: você se vê fazendo coisas mesmo sem querer ou contra o que você acredita. 
  • Controle excessivo: a pessoa quer saber onde você está, com quem está e o que está fazendo o tempo inteiro – e pode até proibir você de sair ou fazer certas atividades, ou falar com certas pessoas. 
  • Isolamento social: o seu círculo fica cada vez mais restrito ao parceiro ou parceira. 

Esses são sinais claros de uma relação tóxica. E, não, não são os únicos. Agressão psicológica, física, verbal e até financeira (o parceiro ou parceira controla o dinheiro que você usa), também são alerta vermelho nesses casos. Nem sempre conseguimos prestar atenção nesses comportamentos quando estamos envolvidas no relacionamento, por isso construir e tentar manter o discernimento para reconhecê-los é importante, além de manter sempre a sua rede de apoio por perto. 

“Para desenvolver discernimento entre a ficção e a vida real, você pode praticar a análise crítica dos conteúdos que consome, questionando as mensagens transmitidas e comparando-as com experiências pessoais e conhecimentos sobre relacionamentos saudáveis”, diz a especialista. 

Ou seja, o problema não é ler sobre personagens moralmente cinzas, mas saber discernir, no comportamento descrito nas páginas, o que é aceitável e o que não é no mundo real. “Sentir angústia, ansiedade, desconforto em relação a determinada situação são sinais de atenção. Quando sentimos desconforto deve ser avaliado em terapia se esse não é um limite. Quando há limites conseguimos ter uma relação de respeito consigo”, continua. 

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Vamos falar de sexo?

Ok, nesse ponto, você pode pensar: “mas os homens vivem há décadas com uma visão distorcida das mulheres e do sexo por causa do pornô”. É verdade, o comportamento dominador, violento do sexo masculino em relação às mulheres pode, também, ser justificado por conta dessa narrativa enviesada sobre o papel da mulher na sociedade. 

E, assim como os homens, as mulheres também podem – e devem! – ter fantasias sexuais. O papel de dominação no sexo é um velho conhecido dessas fantasias, mas, ainda assim, ele não passa de uma fantasia: existem regras, palavras de segurança e limites para o role play. 

“É importante distinguir entre fantasias eróticas inofensivas e visões distorcidas da masculinidade. Fantasias saudáveis podem enriquecer a vida sexual, desde que baseadas no respeito mútuo e consentimento”, explica Larissa. “Por outro lado, fantasias que glorificam comportamentos abusivos ou violentos podem indicar uma necessidade de explorar e entender melhor os próprios desejos e limites. Quando há consequências na autoestima, no próprio valor e no desmerecimento de si, pode-se considerar uma visão distorcida da figura masculina.”

Aliás, “consentimento” é uma palavra-chave aqui. Na fantasia sexual ele não só é essencial como necessário para comprovar que as duas partes estão de acordo com o que vai acontecer na cama. Essa frase é até estranha, né? Porque, na verdade, o consentimento é essencial a todo momento quando falamos de relacionamentos amorosos e relações sexuais, independente da natureza, e do sexo ou gênero dos envolvidos. 

E, de fato, em muitos desses livros existe o momento do consentimento explícito entre os personagens – a frase “Eu preciso que você fale”, é outra que virou uma das favoritas entre as fãs do dark romance. Mas, ainda assim, precisamos considerar todo o contexto dessas relações fictícias para discernir o real da ficção e, principalmente, não deixar que os aspectos negativos e preocupantes de um interfiram no outro, ok?

*As vendas realizadas através dos links neste conteúdo podem render algum tipo de remuneração para a Editora Abril.

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