Entenda porque a ‘PEC Kamikaze’ é a grande polêmica política de 2022

A 'PEC dos Benefícios' é um projeto que aumenta o teto de gastos do governo em ano de eleições - o que é vetado pela Lei Eleitoral

Por Marcela de Mingo, para a Capricho Atualizado em 30 out 2024, 15h46 - Publicado em 19 jul 2022, 06h00
PEC Kamikaze
A lei impede que num ano de eleição sejam criados novos benefícios, para evitar que medidas eleitoreiras beneficiem quem está no poder. Getty Images/Getty Images

Nas últimas semanas, a notícia que mais chamou a nossa atenção foi a da tal “PEC Kamikaze – afinal, com um nome como esse, como não prestar atenção, né? Essa Proposta de Emenda Constitucional (PEC) acabou virando bem polêmico por muitos motivos – um dos principais é a sua característica ilegal.

A Câmara dos Deputados aprovou o texto-base PEC das Bondades na última semana por 393 votos a 14. O texto ainda precisa passar por um segundo turno na Casa antes de seguir para promulgação do próprio Congresso Nacional.

Conhecida por diversos apelidos, como PEC das Bondades, PEC Kamikaze, PEC dos Combustíveis, PEC dos Bilhões, PEC do Estado de Emergência, a proposta prevê o aumento de 400 para 600 reais no Auxílio Brasil e outros benefícios, como reajuste no vale-gás e a criação de um voucher de 1.000 reais para caminhoneiros e taxistas.

Tudo isso autorizado pela decretação de um estado de emergência. Pois é. Mas lembra que falamos de uma característica ilegal? Vem com a gente você já vai entender.

PEC Kamikaze ou PEC do Desespero? 

Na verdade, ela está mais para desesperadora. A oficialmente chamada PEC dos Benefícios virou manchete porque, apesar de oferecer benefícios necessários para a população em um momento de crise como o que vivemos agora, foi lançada e aprovada a menos de três meses das eleições – o que lhe conferiu um caráter eleitoreiro e inconstitucional.

E é isso mesmo. “O governo [do presidente Jair] Bolsonaro está tentando, com o Congresso, mudar as regras eleitorais e as regras fiscais para conseguir gastar mais dinheiro em ano eleitoral”, explica André Roncaglia, professor de Economia da Unifesp (Universidade Federal do Estado de São Paulo).

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“Só que para fazer isso ele precisa oferecer uma justificativa. A lei impede que num ano de eleição sejam criados novos benefícios, para evitar que medidas eleitoreiras beneficiem quem está no poder”, conclui.

A Lei Eleitoral é tão clara sobre isso, mas tão clara, que a gente vai dar espaço para ela falar um pouquinho sobre o assunto:

“No ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei”.

A artimanha do Governo Federal para isso foi decretar, através dessa PEC, um estado de emergência. E sabe quando foi a última vez que isso aconteceu no Brasil? Lá em 2020, quando a pandemia de coronavírus começou a estourar por aqui. Ou seja, quando existia, de fato, uma emergência que colocava a população em risco e pedia medidas de contingência.

O governo alega que a guerra na Ucrânia aumentou o preço do petróleo, gerando uma crise interna. No entanto, o estado de emergência só pode ser decretado diante de imprevisibilidades – não tinha como o mundo prever uma pandemia, certo? A guerra ucraniana contra a Rússia, por outro lado, já acontece há mais de 4 meses, isto é, de imprevisível, ela não tem nada.

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“O preço do petróleo é o resultado da própria política de preços. Não tem a ver com imprevisibilidades e não é incontornável”, continua André. “Seria contornável pela taxação de lucros da Petrobras, por exemplo. Existem momentos em que algumas empresas podem ter lucros exorbitantes por conta de um evento inesperado – foi o caso do setor do petróleo. O governo poderia ter suspendido a paridade do preço de importação – e a empresa teria menos lucros -, ou taxar esses lucros.”

Segundo o economista, o governo poderia usar esse recurso para conceder isenções ou subsídios para as famílias de baixa renda, mas, na prática, não foi o que aconteceu – e essa é uma motivação muito fraca para justificar uma manobra que, no fundo, tenta melhorar a aprovação do presidente logo antes das eleições.

Vale ir contra a lei para ganhar popularidade? 

PEC Kamikaze
Perto das eleições e com uma popularidade baixa, o presidente Bolsonaro espera ganhar corpo com o eleitorado e, quem sabe, ganhar também as eleições. Getty Images/Getty Images

Essas medidas previstas pela PEC Kamikaze – aumento no valor do Auxílio Brasil em R$ 200, subsídios para caminhoneiros e taxistas, vale-gás… – deveriam ter sido pensadas e aprovadas há tempos como medidas sociais estruturadas para ajudar a população em um momento de crise.

Mas, tão perto das eleições e com uma popularidade tão baixa, o presidente Jair Bolsonaro espera ganhar corpo com o eleitorado e, quem sabe, ganhar também as eleições.

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“O que o Bolsonaro está tentando fazer é manter-se vivo eleitoralmente”, continua o professor. “E quais as implicações disso? Ele mexe em regras muito importantes para a democracia, que tem a ver com a sucessão eleitoral. As regras mudam ao sabor de circunstâncias as mais ilusórias, sem um projeto. Ele também esvazia o conceito de calamidade que a instituição atribuiu a cenários muito graves. O Bolsonaro está mexendo em regras que estão no nível constitucional”.

Pensa assim: você chega na sua casa e a sua mãe explica que você dorme no quarto, come na mesa e toma banho no banheiro. No dia seguinte, ela diz que você deve dormir na mesa, comer no banheiro e tomar banho no quarto.

No outro dia ainda, ela explica que você deve tomar banho na mesa, dormir no banheiro e comer no quarto. Nada faz sentido, e o resultado é que você vive um estado de insegurança. Mais ou menos por aqui você deve estar se perguntando: “por que essa loucura foi aprovada no Congresso Nacional?” 

Simples: não só porque o atual presidente tem o apoio da maioria da Câmara dos Deputados, como também porque essa é, de fato, uma necessidade da população: com mais de 33 milhões de pessoas passando fome e o Brasil voltando para o Mapa da Fome do mundo, como negar um aumento nos benefícios sociais? Fica bem difícil, né?

“A realidade nunca é bem recortada do ponto de vista moral. Nem sempre as coisas aparecem como certo e errado, e você pode escolher facilmente. Essa é uma típica circunstância de crise: vão surgir uma série de dilemas que vão exigir das pessoas decisões que nunca vão deixá-las 100% satisfeitas. O governo conseguiu produzir essa situação em que o dilema está posto. Você vai ter que fazer uma escolha e arcar com as consequências daquilo”, reflete André.

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Ou seja, diante das circunstâncias que o Brasil está vivendo hoje, o aumento da pobreza, o desemprego, a alta dos preços e o crescimento quase exponencial da inflação, é muito difícil negar um pacote que prevê benefícios para a população a curto prazo, mesmo que as motivações e justificativas por trás desse pacote sejam inconstitucionais.

Não é à toa que apenas um senador, José Serra (PSDB), votou contra esse pacote quando ele foi à votação no Senado, usando as motivações que discutimos nesse texto para justificar a sua escolha. Aos olhos da lei, ele fez o que parece ser moralmente certo, mas diante do cenário em que vivemos, é possível compreender a escolha dos parlamentares.

Mas e os resultados disso, hein? 

Pensando na motivação inicial para o Governo Federal sugerir um pacote como esse, já podemos dizer logo de cara que possivelmente a situação para o presidente Jair Bolsonaro não vai mudar tanto assim: o pacote tem apenas 3 meses para funcionar antes das eleições e termina em 31 de dezembro deste ano – ou seja, os benefícios têm data para acabar.

“Há uma chance grande disso não beneficiá-lo: ele teve 3 anos para fazer isso e não fez. E o povo não é bobo, a população, apesar de carente, sabe o que está em jogo. Eu não acho que o contingente que vai melhorar a opinião do governo é o suficiente para ele ganhar, mas pode ser o suficiente para que ele chegue ao segundo turno”, avalia o economista.

A curto-prazo, é lógico que a PEC vai trazer benefícios, principalmente para as pessoas mais necessitadas. No entanto, com a virada do ano, ela, muito provavelmente, não será prorrogada – até porque o próprio documento aprovado não prevê uma continuidade dos projetos ali estabelecidos.

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“Qual a implicação do governo gastar demais sem necessidade? Os investidores que investem nos títulos que o governo emite vão dizer ‘você tá gastando demais, eu estou com medo de você não conseguir pagar essas dívidas, eu só vou colocar dinheiro se você subir a taxa de juros’. Isso pode significar uma bola de neve da dívida pública e, com medo dessa bola de neve, o Ministro da Economia vai tirar esses benefícios.”

E isso tudo gera um terceiro problema, mas agora para o presidente que vai assumir o cargo a partir de 6 de janeiro: o próximo governo não vai poder gastar tanto dinheiro quanto o atual.

Vamos voltar para a relação com a sua mãe. Vamos supor que, um dia, você pede o cartão de crédito dela emprestado e compra um monte de coisas que sempre quis – e esse valor todo vai até quase o limite máximo de gastos do cheque-especial. Você devolve o cartão e a conta do banco da sua mãe, agora, está no vermelho, com um valor muito pequeno a ser gasto para as contas do mês sem que isso cobre ainda mais juros no mês seguinte.

Sacou o tamanho do problema? 

Com o orçamento do governo é mais ou menos a mesma coisa. O próximo presidente vai ter um limite de gastos muito baixo por conta dos gastos exorbitantes liberados por essa PEC.

Se a sua mãe for uma pessoa de super confiança, ela pode pedir uma extensão do cheque-especial no banco com a promessa de que vai pagar tudo dentro dos prazos – e o banco aceitar a proposta. Se ela não for uma pessoa de confiança… o banco pode negar esse pedido e, aí, o constrangimento (sem contar o problema!) vai ser grande.

Essa mesma analogia vale para o presidente. Se quem assumir a presidência em 6 de janeiro de 2023 for uma pessoa que transmite confiança para o mercado financeiro, o nosso horizonte pode ser um pouco melhor em termos de investimentos e orçamento públicos. Agora, se não for… você já sacou, né?

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