Anne Mota aponta erros sobre transição em Emilia Pérez: “É problemático”

Atriz protagonista de Alice Júnior contou à CAPRICHO as inconsistências que sentiu em relação ao filme que recebeu 13 indicações ao Oscar

Por Arthur Ferreira 2 mar 2025, 21h01
O

filme Emília Pérez, dirigido pelo cineasta francês Jacques Audiard, é um dos grandes destaques do Oscar 2025, com impressionantes 13 indicações. No entanto, a produção gerou uma polêmica gigantesca, envolvendo discussões sobre a representação de personagens trans.

Para aprofundar o debate sobre como as mulheres trans estão sendo retratadas no cinema, a CAPRICHO conversou com Anne Mota. A atriz brasileira, e protagonista do filme Alice Júnior, trouxe uma perspectiva crucial sobre o projeto.

Estrelado pela espanhola Karla Sofía Gascón, o longa conta a história de um chefe de cartel mexicano que pede ajuda a uma advogada (Zoe Saldaña) para se aposentar e a se transformar em uma mulher. Logo de início, a trama polemiza ao dar a entender que a personagem quer transicionar para fugir da justiça.

Este é, justamente, um dos pontos mais discutidos nas polêmicas de Emilia Pérez. Ao refletir sobre como a transição de Emilia tem um impacto na personalidade da personagem, Anne apontou uma visão equivocada do filme. “Você não se torna outra pessoa – você passa a viver como quem sempre foi, só que antes não podia”, afirmou a atriz de 26 anos.

Continua após a publicidade

Mota também criticou a voz afinada de Emilia, sugerindo que uma cirurgia foi feita para isso, mesmo que não seja mencionado na trama: “O filme mostra várias cirurgias, mas nenhuma relacionada à voz. E isso é um erro, porque hormônio não muda a voz. Você pode fazer o tratamento hormonal que for, mas sua voz não vai mudar.”

A questão da voz da personagem vai além: foi usada IA para modificar a voz de Gascón e deixá-la “mais feminina”, reforçando a ideia de que a identidade de gênero de uma pessoa trans depende de características físicas que podem ser modificadas, como a voz.

A Karla é uma mulher trans, mas antes de tudo, ela é uma mulher. Então, por que foi usada inteligência artificial para afinar ou suavizar a voz dela? Qual a necessidade disso, se a voz da Karla já é a voz de uma mulher? Isso é transfóbico

Anne Mota sobre o filme Emília Perez

Sobre a cena em que Emília, anos após a transição, engrossa a voz em uma discussão com Jessi (Selena Gomez), Anne é categórica: “Eu achei essa cena transfóbica. Implicar que mulheres trans precisam ter uma voz mais suave, mais fina, mais aguda para serem consideradas mulheres é transfobia”, ressaltou, enfatizando que “a Karla é uma mulher. Pronto.”

Continua após a publicidade

Outro debate polêmico é a ênfase nas cirurgias de afirmação de gênero, uma escolha que Anne considerou “problemática”. Ela alertou que a ideia de que “uma pessoa trans precisa de cirurgias para ser quem é” reforça estereótipos prejudiciais. Para a atriz, é fundamental que a narrativa do filme não faça parecer que a identidade de uma pessoa trans depende de procedimentos médicos.

Em relação ao corpo de Emília, Anne também questionou a representação da transição: “O filme mostra ela com dois anos de terapia hormonal, mas sua fisionomia permanece quase inalterada. Dois anos de terapia hormonal são suficientes para muitas mudanças – não poucas, mas muitas! E isso não foi retratado corretamente.”

O problema é reforçar a ideia de que uma pessoa trans precisa passar por várias cirurgias para ser quem é. Isso não é verdade. Nenhuma cirurgia define uma pessoa trans – e esse é um fato.

Anne Mota sobre o filme Emília Perez

Representatividade trans no Oscar e as críticas da comunidade

Apesar das críticas, Anne reconhece o marco de ter uma atriz trans sendo indicada ao Oscar pela primeira vez. Para ela, essa é uma conquista significativa: “Eu acho que o maior ponto positivo desse filme é o fato de termos uma atriz trans como protagonista e que a personagem principal também seja trans. Isso é muito importante.

Continua após a publicidade

A estrela, inclusive, destacou um momento em que se sentiu positivamente representada no filme. Ela se referiu a uma frase que, para ela, foi uma verdadeira representação da sua própria vivência: “Inúmeras vezes eu pensei em me matar, mas não é justo desaparecer sem ter vivido a própria vida.”

As palavras foram mais do que uma simples linha de diálogo, elas ecoaram um sofrimento pessoal. “Essa frase eu realmente achei sensacional, porque me identifiquei com ela. Antes da minha transição, tentei tirar minha própria vida. Inclusive porque eu não podia ser a Anne, não podia ser quem sempre fui. Eu tinha medo, por causa do bullying que sofria na escola.”

Não é justo desaparecer sem ter vivido a vida que sempre quis viver

Anne Mota

Anne também refletiu sobre a possibilidade do filme abrir portas para mais artistas trans em grandes produções: “Eu realmente acredito que precisamos avançar no audiovisual, mas de outras formas, como filmes e séries que realmente tragam impactos positivos e não reforcem estereótipos ou negligenciem as realidades de grupos específicos.”

Continua após a publicidade

“Uma boa narrativa protagonizada por pessoas trans deve fugir dos clichês que colocam as pessoas trans sempre como figuras trágicas, problemáticas ou em busca de mudança constante”, explicou. Ou seja, histórias que mostram pessoas trans vivendo suas vidas de maneira leve e positiva, sem ser definidas pela transição ou sofrimento, são as que realmente refletem a diversidade da comunidade.

Mota ainda indicou produções como Alice Júnior (que é protagonizada pela mesmo e que em breve receberá uma sequência), Valentina, Veneno, Pose, Manhãs de Setembro e Amanda e Caio como exemplos de boas representações de pessoas trans no audiovisual, destacando que “precisamos ver personagens trans se apaixonando, avançando na carreira, perseguindo seus sonhos, enfim, vivendo como qualquer outra pessoa.”

Emília Pérez pode ter marcado um passo significativo na representatividade trans no cinema, mas, como nos lembra Anne, o caminho ainda está longe de ser perfeito. A luta por narrativas autênticas e respeitosas continua – e o debate que este filme gerou é apenas mais um sinal de que estamos cada vez mais próximos de um futuro em que a verdadeira diversidade seja reconhecida nas telas.

Publicidade