Elas batem à porta

Quando meninas tomam coragem para reivindicar seus direitos frente a quem faz as leis, o que acontece? A resposta pode mudar muitas coisas no futuro.

Por Andréa Martinelli 22 jul 2025, 06h00
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oi assistindo à série As Visões da Raven, da Disney, que Amanda Menezes percebeu seu interesse por política e pautas sociais. A personagem Chelsea, interpretada por Anneliese van der Pol, era não só a melhor amiga de Raven como também a líder do clube de preservação do meio ambiente da escola onde estudavam.

“Ela era superativista, e eu sempre achei incrível. Eu ficava assim: ‘Cara, que legal!’ E, tipo, sempre que tinha um personagem assim, que gostava de mudar tudo, chegar e fazer acontecer, eu pensava: ‘Queria tanto ser assim.’ Foi o que me fez perceber que eu também queria fazer as mesmas coisas”, compartilha.

Na série, Chelsea era frequentemente vista liderando protestos, defendendo causas ambientais e engajando quem estivesse ao redor. Apesar da distância entre a realidade da personagem e a de Amanda, moradora do Caju, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, as duas se conectam — e muito — quando o assunto é política.

O desconhecimento sobre os trâmites burocráticos da política institucional não impediu a personagem na série — e muito menos Amanda, que, aos 17 anos, reuniu suas amigas para buscar mudanças em prol do bem coletivo: elas bateram à porta de parlamentares para pressioná-los e propor projetos de lei que combatessem a pobreza menstrual no Brasil. E conseguiram fazer a diferença.

“Não queria só arrecadar absorventes uma vez e pronto. A gente sabia que o problema era contínuo. Por isso, fomos atrás de políticos para entender como mitigar essa situação de forma permanente.”

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A jovem conta que enfrentou muitos “nãos”, inclusive de uma parlamentar mulher. “Ela disse ser uma pauta de esquerda e que não podia nos ajudar. Isso me marcou muito”, lembra. “Porque dignidade menstrual não é uma pauta de um lado político. É uma pauta humana.”

O primeiro “sim” veio do então deputado estadual Renan Ferreirinha (PSD). “Ele não só topou, como nos colocou à frente do projeto. Disse que a gente podia escrever a proposta de lei. Aquilo valeu por todos os ‘nãos’”, diz.

Pouco tempo depois, a mobilização ganhou corpo: o Projeto de Lei 8924/2020, que reduz o imposto sobre absorventes descartáveis e os inclui na lista de produtos da cesta básica no Rio, foi aprovado — e inspirou outras iniciativas semelhantes em todo o país.

E aí elas foram atrás (e não desistiram)

A ideia de Amanda surgiu após uma exaustiva campanha de arrecadação de absorventes durante a pandemia, em 2020. Nessa época, ela já fazia parte do movimento Girl Up Brasil, que capacita e conecta jovens lideranças femininas — foi ali que ela e outras amigas criaram o clube Elza Soares e começaram a discutir temas caros para elas e o que poderiam fazer a respeito.

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A pobreza menstrual apareceu como prioridade. Segundo a pesquisa Livre Para Menstruar, da Girl Up com apoio da Herself, estima-se que 31% das adolescentes brasileiras já faltaram à escola devido à menstruação. Vergonha, cólicas, ausência de banheiros adequados e falta de produtos menstruais estão entre os principais motivos.

Na mesma época, em Aracaju (SE), Rebeca Sousa também começou uma mobilização com o mesmo tema — e deu com a cara na porta muitas vezes. Quer dizer, ficou com dezenas de e-mails sem resposta. “A gente levou muitos ‘nãos’. No online, é mais fácil ignorar, né?”

Para as entrevistadas pela CAPRICHO, em alguns momentos, ser ouvida foi mais difícil do que estudar para o Enem sem luz em casa. Às vezes, o que se ouviu de volta era deboche, silêncio ou grosseria. “Teve gente que disse que [pobreza menstrual] era inconstitucional, que era pauta de esquerda. E teve quem dissesse que éramos ‘fofinhas’ e só desse as costas. É uma forma de descredibilizar.”

Rebeca reforça que não se trata apenas de um problema de saúde, mas de acesso, desigualdade e cidadania. Enquanto outros estados avançavam, Sergipe só aprovou a lei em 2023, três anos após o início da mobilização no Rio de Janeiro e a nível nacional.

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“Foi um processo difícil, mas não paramos”, pontua. Atualmente, o município conta com o Projeto Florir, que promove informação sobre higiene menstrual e garante a distribuição de produtos nas escolas da rede municipal. “Mas ainda tem muito mais a se fazer”, diz a jovem.

A nível federal

Nos últimos anos, meninas brasileiras vêm abrindo caminhos em espaços antes ocupados apenas por homens engravatados. Seja organizando protestos, mandando e-mails para deputados ou criando perfis no TikTok para explicar leis difíceis com ganchos de cultura pop e transparência, elas assumem um papel de protagonismo.

Tanto Amanda quanto Rebeca fazem parte de clubes mediados pela Girl Up Brasil e tiveram participação significativa na sensibilização do tema em seus estados — e também a nível federal. Ao lado delas, guiando os movimentos, estava Graziella Carvalho, que, na época, coordenava a mobilização dos grupos da organização social.

“Sempre me coloquei nesse lugar de facilitar para que as meninas se sentissem capazes de conversar de igual para igual. O fato de serem meninas é uma potência, não uma fraqueza”, diz. “Fui uma menina que sofreu com a pobreza menstrual. Usava lencinho para ir à escola, ficava angustiada por não ter absorvente. Na época, isso nem tinha nome.”

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Tudo ganhou ainda mais força quando, em 2021, o então presidente Jair Bolsonaro sancionou a criação do Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual. Amanda, Rebeca, Grazi e tantas outras meninas foram a Brasília (DF) participar de uma mobilização nacional. “Minha história começou no meu quarto, em reuniões online. E dali fui para Brasília”, lembra Rebeca. “Provamos que é possível.”

O que parecia uma conquista, no entanto, veio com uma pegadinha: Bolsonaro sancionou a lei, mas vetou a distribuição gratuita de absorventes para estudantes de baixa renda e pessoas em situação de rua — justamente os pontos centrais da proposta. Em março de 2022, o Congresso derrubou o veto e a política pública foi finalmente aprovada.

Elas enfrentaram o medo de parecer “pequenas demais” para ocupar espaços políticos — e descobriram que tamanho, na verdade, é outra coisa: é coragem, é voz, é coletividade. Tanto que agora essa história está contada no documentário Livre Para Menstruar, realizado pela Girl Up em parceria com a Maranha Filmes, disponível no YouTube.

O que acontece quando uma menina bate à porta de um legislador? Às vezes, nada. Às vezes, um suspiro de impaciência. Às vezes, uma porta que se fecha. Mas, muitas vezes, acontece algo mágico. “Quando a gente sonha sozinha, parece uma utopia. Mas quando sonha coletivamente, a gente realiza”, finaliza Rebeca Sousa.

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