Obrigatoriedade não é imposição: muçulmanas falam sobre o polêmico hijab

A luta delas é descontruir a visão ocidentalizada e estereotipada do traje tradicional do Islamismo, pois o hijab não diminui o feminismo da mulher árabe

Por Isabella Otto Atualizado em 30 out 2024, 17h15 - Publicado em 21 ago 2021, 10h01

Falar sobre o uso da burca é bastante delicado, ainda mais quando a discussão tem um visão ocidentalizada da questão, muitas vezes depositando sobre a palavra um teor negativo. A tendência é que a gente fale em nome das mulheres árabes, pois nos foi passado que elas precisam de ajuda, pois estão inseridas em uma cultura bastante machista. Mas, como tudo na vida, a gente precisa analisar os recortes da situação e não dá para generalizar.

O uso do hijab é algo que não podemos tratar com simplicidade. Não é só sobre usar ou não usar. É preciso entender a realidade em que aquela mulher vive, a relação dela com o traje e perceber a diferença que existe entre algo ser obrigatório e ser imposto.

Colagem de mulheres muçulmanas usando o hijab, véu que deixa apenas o rosto e as mãos à mostra. Todas estão sorrindo.
Da esquerda para a direita: Mariam, Mag, Fatima e Carima Arquivo Pessoal/CAPRICHO

Para entender melhor todas essas questões, que vieram mais uma vez à tona com a tomada de Cabul, capital do Afeganistão, novamente pelo Talibã, conversamos com quatro mulheres muçulmanas: a Fatima Cheaitou, de 23 anos, criadora de conteúdo do Líbano, a Carima Orra, de 27 anos, empresária, educadora e influenciadora digital de São Paulo, a Mariam Chami, de 30 anos, empresária, nutricionista e criadora de conteúdo que vive entre São Paulo e Santa Catarina, e a Mag Halat, de 24 anos, criadora de conteúdo de São Paulo e dona da marca By Mag Halat. Cada uma vive sua realidade, que não representa a realidade integral das mulheres árabes, mas todas seguem a religião Islâmica e mostram a importância de se esclarecer alguns fatos.

1. O que o Islamismo diz sobre o hijab?

Fatima: O hijab é um dever da mulher muçulmana, de acordo com a religião Islâmica. É sobre se vestir com modéstia, cobrir as curvas do seu corpo, o cabelo… Só podemos mostrar o rosto e as mãos. E a burca [veste que cobre todo o corpo e tem uma rede diante dos olhos para permitir a visão, muito comum no Afeganistão] é um tipo de hijab.

Carima: Várias passagens no Alcorão, livro sagrado muçulmano, e nos Hadiths, declarações atribuídas ao profeta Mohamad, fazem referência ao véu das esposas do profeta. É algo obrigatório a partir da primeira menarca para as mulheres que seguem o Islamismo. O véu é uma forma de demonstrar sua submissão a Deus.

Mariam: O rosto e as mãos são algumas partes que podemos mostrar, mas em algumas interpretações e culturas, a mulher usa o niqab [traje parecido com a burca, mas que os olhos ficam à mostra sem a proteção da rede, muito comum na Arábia Saudita e no Iêmen]. Ou seja, Deus ordenou que as mulheres muçulmanas se cobrissem em submissão a Ele e não a nenhum homem. No entanto, a mulher tem o livre arbítrio e ela é quem deve escolher.

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Mag: Sou a única mulher da minha família a usar o véu. Além do hijab, que é o véu/lenço que usamos pra cobrir os cabelos e pescoço, devemos nos vestir com modéstia, sem decotes, sem transparências, sem roupas curtas ou que marquem o corpo. Então o hijab é toda uma vestimenta, além do lenço. E além da parte da vestimenta, temos também a parte comportamental. Eu sempre digo que a mulher muçulmana literalmente carrega a religião na cabeça. Por isso, devemos ter muita responsabilidade ao usarmos o hijab, pois estamos o tempo todo representando a nossa fé.

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2. Dizem que, apesar de ser obrigatório, o uso não deve ser imposto. Como funciona essa questão?

Fatima: É um dever da mulher muçulmana, mas ao mesmo tempo nós temos livre arbítrio. Então, ninguém pode impor a mim que eu faça alguma coisa, porque Deus impôs que a mulher deve usar o hijab, mas ele também deu a ela o livre arbítrio. E se Deus me deu o livre arbítrio, uma pessoa impor o uso ou não do hijab seria pecado. Quem é o ser humano, quem é o homem, para obrigar isso? No fim, nossas intenções são o que mais valem. Então, eu posso não usar o hijab mas estar trabalhando nisso para melhorar cada vez mais, tanto na vida mundana quanto para o dia do juízo final, pois só quem pode julgar minhas escolhas é Deus.

Carima: Dentro da religião é obrigatório, mas a religião também aplica o livre arbítrio, ou seja: a mulher usa se se desejar, se quiser. Aqui na Terra ninguém pode obriga-la a usar ou não. A minha cunhada não usa, a minha sogra não usa, tenho várias tias e primas que não usam… Ninguém pode querer mandar nisso. O julgamento cabe a Deus, não ao homem.

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Mariam: É uma decisão exclusiva da mulher, mas não compulsória. A Bíblia diz que fazer sexo antes casamento é proibido [em Coríntios, Hebreus e Atos dos Apóstolos, por exemplo], no entanto as pessoas usam o livre arbítrio para seguir ou não isso [é uma questão de interpretação. Hoje, alguns padres defendem, inclusive, que o problema não é o sexo antes do casamento, mas a imoralidade fora dele].

Mag: O uso do véu se torna obrigatório para as meninas após a puberdade. A primeira menstruação marca essa passagem da fase de menina para mulher, mas a decisão e o momento de usar o véu deve ser dela. Essa decisão não pode ser forçada, pois é um ato de fé. Se for uma coisa forçada, perde o sentido.

3. Por que você escolheu usar o hijab?

Fatima: Eu escolho todos os dias conscientemente usar o hijab, pois é uma forma de externalizar minha fé. É uma forma de eu adorar a Deus.

Carima: Uso hijab desde os meus 6 anos, ninguém me obrigou e nunca passou pela minha cabeça parar de usar. Uso porque me sinto bem em representar minha religião.

Mariam: Sempre soube que, quando a menarca chegasse, usaria o hijab. Foi natural. Eu nasci e cresci em uma família religiosa.

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Mag: Comecei a usar o véu aos 21 anos. Já estava casada e já tinha plena convicção de que era isso que eu queria, apesar de eu não ter o apoio da minha família nessa decisão. Eles achavam que eu poderia sofrer muito preconceito e que o véu dificultaria a minha vida. Mas permaneci na minha escolha e não me arrependo! O véu faz parte da minha identidade, me lembra quem eu sou e me aproxima de Deus.

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4. Discussões ocidentalizadas sobre o uso do véu atrapalham o feminismo das mulheres árabes e apresentam certo tipo de intolerância religiosa?

Fatima: Essas discussões acabam oprimindo a mulher muçulmana e atrapalhando não só nosso feminismo, mas o feminismo em geral. Várias vezes vejo páginas de feministas que, ao mesmo tempo que dizem estar lutando pelos direitos das mulheres serem livres, dizem que o hijab é uma opressão. E mesmo que você explique que não, que é uma escolha, muitas optam por não ouvir. Não é porque pra você o hijab não é liberdade, que pra outra pessoa isso também não vai ser. Essa perspectiva do Ocidente de que cobrir o corpo é opressão atrapalha o feminismo.

Carima: Ninguém pode obrigar a mulher ao usar o véu, assim como ninguém tem direito de interferir se ela quiser usar de fato. A opressão existe de ambos os lados. Vejo bastante gente tentando salvar a mulher muçulmana de algo que ela mesmo escolheu.

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Mariam: Sempre digo que o feminismo é seletivo. “Seus corpos, suas regras”; não é esse o lema? Então, porque no caso da mulher muçulmana, esse lema não se aplica? Nós não precisamos ser salvas pela ideia ocidental de que corpos a mostra são sinônimo de liberdade e corpos cobertos são sinônimos de opressão.

Mag: Vivemos em um constante discurso de “meu corpo, minhas regras”, mas quando a minha decisão é de cobrir o meu corpo, as pessoas enxergam isso como opressão. E, na verdade, para mim é liberdade! Eu tenho a liberdade de escolher quem vai ver o meu corpo. Acredito que as mulheres ocidentais têm muita dificuldade em enxergar que somos livres e não precisamos de “salvação”.

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5. Você acredita que essa questão sobre o uso do hijab é religiosa, política ou um pouco de cada?

Fatima: É uma questão religiosa, mas acaba sendo também política. Afinal, é a identidade que está em jogo, a identidade da mulher muçulmana. A gente acaba sofrendo muita xenofobia, islãfobia e preconceito por causa de quem somos e como nos vestimos. Aonde quer que eu vá, por mais que seja difícil e que eu vá sofrer, escolho continuar usando o hijab, mesmo ouvindo comentários do tipo: “Volta pro seu país, mulher-bomba”.

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Carima: O uso do hijab é religioso quando parte da vontade da mulher. Agora, quando se trata de obrigar a mulher a usá-lo, a questão se torna política, já que a religião discorda disso.

Mariam: Hoje, a discussão envolvendo o uso do hijab no Afeganistão é totalmente política.

Mag: Eu acredito que depende muito da situação. Teoricamente, seria uma questão puramente religiosa, mas alguns países islâmicos mais conservadores adotam essa vestimenta, que é religiosa, como obrigatória pelo Estado. Nesse caso, se torna uma questão política e cultural.

+: Artista retrata o desaparecimento das mulheres muçulmanas em fotos

6. Qual é a sua opinião sobre a situação atual do Afeganistão, especialmente sobre o futuro e o papel das mulheres muçulmanas?

Fatima: A lei que o Talibã aplica não é a lei islâmica. É uma lei deturpada e extremista. Muita coisa foi tirada do contexto. Mas é importante ressaltar que até antes da tomada do Talibã as mulheres já sofriam muito no Afeganistão. Reforço: não é sobre religião, é sobre política.

Carima: Não sei dizer… Ninguém sabe… Obviamente, estão em um momento de tensão, justamente por não saberem o que vai acontecer. O que estou fazendo no momento é rezar por todas as mulheres afegãs.

Mariam: O Talibã vai de total desencontro com o Islã e contra os direitos das mulheres, que devem ter liberdade de exercer a religião da maneira que elas quiserem, viver da maneira que querem. Na verdade, todo ser humano merece respeito e liberdade.

Mag: Eu acredito que é preciso ter muita cautela e calma ao abordar esse assunto, pois são muitas questões envolvidas e eu vejo um enorme movimento islamofóbico retornando com esse assunto em alta. O Talibã é um grupo extremista e militar que não representa a religião Islâmica, e eu vejo muitas pessoas falando como se as atitudes deles refletissem o Islamismo como um todo, e como se todos os muçulmanos apoiassem tais atitudes. Temo pelo que este grupo possa fazer com a população afegã no geral, e também com as mulheres, visto que, no passado, este grupo se mostrou extremamente radical.

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7. Quando alguém te critica por usar o véu, o que você sente?

Fatima: Antes, eu me sentia muito na obrigação de justificar as minhas ações. Hoje, não mais. Eu sei por que eu uso o hijab e eu tento explicar isso da melhor forma possível para os outros, mas tem muita gente que não quer aceitar meu ponto, não quer entender. Só quer desvalidar o que sentimos e vivemos. É importante respeitar as crenças dos outros. Quando eu conto sobre a minha vivência, eu não estou impondo minha religião.

Carima: O que sempre digo é que o véu é uma escolha minha, que me sinto bem usando. Não sinta dó de uma pessoa realizada!

Mariam: Hoje em dia, quando alguém crítica o meu hijab, eu uso pra gerar engajamento nas minhas redes. (risos) Pelo menos, trago conteúdo para meus seguidores. Eu levo na brincadeira, mas eu explico que, para mim, na minha vida, ele me completa.

Mag: Me sinto incomodada, chateada e um pouco exausta. Sou criadora de conteúdo desde 2016, e desde então eu compartilho nas minhas redes sociais um pouco da minha vida como muçulmana e também assuntos relacionados à moda, beleza e lifestyle. Eu sempre falo que o véu é uma escolha, é um ato de devoção entre mim e Deus. Usamos o véu inclusive seguindo o exemplo de Virgem Maria! Eu vejo o preconceito gritante o tempo todo. As pessoas se admiram quando veem uma freira, mas ficam com pena quando veem uma mulher muçulmana. É claro que existem mulheres muçulmanas que são oprimidas, mas existem mulheres oprimidas em todo o mundo. Temos que aprender a enxergar que existem realidades diferentes da nossa, pessoas com vivências diferentes, culturas diferentes, e que não é porque algo é bom ou ruim pra você, que será assim para o outro. Gostaria muito que as pessoas tivessem mais respeito, menos preconceito, que estivessem mais abertas a ouvir e a conhecer outras religiões e culturas, e saber apreciar a diversidade da vida.

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